As Notas

A casa da senhora de pele muito branca, de saia de lã xadrez e de perfume adocicado ficava na rua principal da cidade. Ao se chegar lá a sala já estava pronta, silenciosa, com seus móveis escuros e antigos, com os diplomas expostos e dispostos na parede e aquele aroma de passado. A senhora tinha poucos cabelos, tingidos de castanho, olhos escuros e profundos e toda a paciência do mundo. Ela tinha uma voz baixa, tranquila, que denotava calma, tolerância, compreensão e discrição. Depois dos minutos iniciais de trocas sociais ela abria seu piano alemão e retirava o feltro verde, mostrando as teclas amareladas, tocadas e trocadas por dezenas de pessoas que ela lá recebia gentilmente com seu copo de guaraná. Porém, além das minhas tentativas frustradas de querer aprender a tocar aquele instrumento dificílimo que eu sonhava desde a infância e das minhas partituras espalhadas junto ao caderno de teoria musical, o que me faz recordar dela era seu batom vermelho, que ela retocava a cada hora, a cada entrada e saída de um aluno, além do pó-de-arroz esbranquiçado.
Não sei se a desculpa para eu não ter aprendido a tocar piano foi minha absoluta falta de tempo  ou de talento, por mais que eu gostasse de música. Ainda me esforço para entender (ou aceitar) que a vida nos oferta necessidades diversas em momentos diferentes, na companhia de pessoas passageiras que gostaríamos, às vezes,  que fossem permanentes.
Hoje, ao me preparar para o trabalho, coloquei  o batom, penteei o cabelo, olhei dentro do espelho e notei que eu estava fazendo exatamente o que ela fazia comigo - preparando-se -  para ouvir, motivar e ensinar, sem esquecer da cor.
Ainda escuto música de piano. Muita. Ela me relaxa, inspira, me carrega para lugares e momentos únicos, que por vezes me confundem,  me fazendo me perder no tempo, no espaço e no meu coração.


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