Fui



Ela levou anos pra decidir. Levou 21 anos na verdade. Só que chegara o dia. O dia do ‘saco cheio’. ‘ Today is the day. ’ PONTO. Perguntava-se porque demorara tanto tempo pra tomar uma decisão. Logo ela que era a Senhora Decisão, que vivia se vangloriando de ser uma mulher enérgica, dona do seu nariz, consciente, concisa, confusa...
Se tudo nos últimos anos tinha se tornado uma droga, por que não cortar o vício de uma vez por todas? Por que continuar algo que definitivamente não trazia mais alegrias, mais saudades, mais prazer?
Pensava na sua dor. Naquela maldita dor nas costas e no pescoço que não passava. Aquela dor de cabeça que não lhe pertencia. Pensava nas dores do parto que teria mais uma vez. Pensava que o que lhe doía agora não fora o momento ruim, a palavra ‘despejada’ e grosseira, o descuido repetido, a falta de atenção. Não fora a indecisão do outro, o orgulho disfarçado, o volume da voz ou o perder a linha. Não fora o excesso, a arrogância velada, a oportunidade perdida do silêncio, a imaturidade, a carência, a impulsividade, a falta de diálogo ou entendimento. Tampouco fora o  perder-se, o perder por vezes de SI, ou resgatar alguém que nem mais existia. Isso foi, passou, embora fosse e estivesse presente.
O que doía era remover da vida os poucos momentos agradáveis de felicidade, de longas conversas, de partilha, a doação desmedida e despojada, o ensinamento, a música detalhada, a fruta cortada, o café adoçado, a cama arrumada, as flores na mesa, o pão frito.
O que lhe doía era perder de vista o dia-a-dia do outro, a palavra inteligente e dita sem pretensão; o que lhe feria era lembrar da espera ansiosa, do prazer da companhia e da presença, da risada divertida, da simplicidade das coisas.
O que lhe pesava era o ser incapaz de transformar, de adaptar e não se ter alternativa nem habilidade ou sensibilidade para criar novas fórmulas feitas com frutas  exóticas, banhos de chuva e baldes nas goteiras. Era o não saber transmutar os sons altos, os telefones que tocavam, os fantasmas que rondavam, as grandes tristezas e as imensas alegrias, as fotos e quadros nas paredes, os chaveiros que piscavam, os livros, os cds, as luminárias de papel e os pratos sujos na pia.
Pesou na balança. Tentava-se ver antes e depois, como nas fotos da Internet. Não seria a primeira nem a última. Hesitou por alguns momentos e olhou pela última vez ao redor. Se algum dia precisara disso, agora não precisava mais. Nunca mais, decretou. Pegou a sacola barata que continha as poucas coisas que lhe ainda eram estimadas. Contou os ‘pilas’ na carteira e percebeu que podia pegar um táxi na esquina para chegar na rodoviária. Antes de fechar a porta enviou um WhatsApp dizendo simplesmente, 'Fui (sonhar meu sonho)'.

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No Domingo



Lembrei de uma grande amiga. Lembrei do tempo que passamos juntas e do quanto ela me fez feliz, ou rir, ou ficar braba. Lembrei das vezes em que estava irritada e que descarreguei nela minha frustração, minhas tristezas, meus problemas, minha dor. E, no tempo em que nossa amizade durou, nunca, simplesmente nunca, vi em seus olhos censura, reprovação, austeridade ou julgamento. Muito pelo contrário. Ela tinha olhos lindos, meigos, profundos, que enxergavam minha alma como ninguém e que me evitavam quando eu ficava muito tempo longe dela sem dar notícias. Aí ela se tornava indiferente, superior, inatingível. Nunca foi extremamente amorosa (a menos que tivesse algum interesse), mas eu entendia esse seu traço menos bom e fazia de conta que não percebia. Porém, na maioria das vezes em que nos encontrávamos, eu notava sua alegria ao me rever. Normalmente estava contente, faceira, gostava de passear na rua a pé, ou de carro, gostava de flertar, de ser vista. Era bonita, estilo mignon, mas tinha postura, presença, sendo contemplada por onde passasse. Era inteligente (até demais para o meu gosto), além de um pouco manipuladora. Era teimosa, não aceitava conselhos de ninguém e não gostava que falassem alto com ela.Tinha muita personalidade, um timing próprio, era dona do seu nariz.

Nossa amizade foi longa, instantânea. Nos gostamos mutuamente, desde a primeira vez em que nos encontramos num sábado de manhã, quando percebi que 'ela' me escolhera pra ser sua amiga - e não eu a dela. Me senti privilegiada, especial, a escolhida.

Era uma amiga cara, de saúde debilitada, com quem eu não hesitava repartir meu dinheiro a qualquer hora do dia ou da noite. Não havia final de semana nem feriado. Na hora que ela precisava eu estava lá. Sempre.

Quando jovem era namoradeira. E quando se apaixonava ficava louca, desvairada. Amores breves, passionais, com desconhecidos, muito diferentes de sua origem sofisticada. Momentos em que eu conversava com ela e tentava lembrá-la disso. Afinal, ela era uma 'lady'. Não adiantava. Ela não ouvia. Ouvia o que queria.

Com a idade foi ficando mais doente. Eu constatava isso em seu corpo e em seu comportamento. Não namorava mais, passava muito tempo deitada, dormindo, roncando, preguiçosa. E o fantasma aquele da separação me alertava que ela iria embora a qualquer momento...

Em suas últimas semanas fiquei dia e noite com ela. Gastei o que eu tinha e o que eu não tinha. Levei-a ao médico e fizemos tudo o que foi possível. Ela me olhava e eu sabia que ela me agradecia, mesmo não falando. Me agradecia por saber que eu estava lá e que eu dava a ela minha companhia, meu amor sem condições, meu tempo, meu melhor. Foram dias cansativos, de frio seco, céu azul e vento gelado. Dias lindos de inverno. Quase um ano atrás. Quase um ano que eu não conseguia falar sobre isso. Quase um ano que minha grande amiga se foi.

Lembro dela muito, com uma imensa saudade, que não me permite fazê-lo sem tristeza, com egoísmo.

Dorinha se foi. E com ela se foi um monte de mim. E me dou conta que esses elos que estabelecemos simplesmente tornam a vida mais fácil, mais feliz, menos 'eu'. Nos fazem mais próximos do real, da natureza, de nós mesmos, daquilo que de verdade somos e não do que possuímos ou imaginamos ser. O difícil não é estabelecer, é interromper.







Não deu tempo