No Domingo



Lembrei de uma grande amiga. Lembrei do tempo que passamos juntas e do quanto ela me fez feliz, ou rir, ou ficar braba. Lembrei das vezes em que estava irritada e que descarreguei nela minha frustração, minhas tristezas, meus problemas, minha dor. E, no tempo em que nossa amizade durou, nunca, simplesmente nunca, vi em seus olhos censura, reprovação, austeridade ou julgamento. Muito pelo contrário. Ela tinha olhos lindos, meigos, profundos, que enxergavam minha alma como ninguém e que me evitavam quando eu ficava muito tempo longe dela sem dar notícias. Aí ela se tornava indiferente, superior, inatingível. Nunca foi extremamente amorosa (a menos que tivesse algum interesse), mas eu entendia esse seu traço menos bom e fazia de conta que não percebia. Porém, na maioria das vezes em que nos encontrávamos, eu notava sua alegria ao me rever. Normalmente estava contente, faceira, gostava de passear na rua a pé, ou de carro, gostava de flertar, de ser vista. Era bonita, estilo mignon, mas tinha postura, presença, sendo contemplada por onde passasse. Era inteligente (até demais para o meu gosto), além de um pouco manipuladora. Era teimosa, não aceitava conselhos de ninguém e não gostava que falassem alto com ela.Tinha muita personalidade, um timing próprio, era dona do seu nariz.

Nossa amizade foi longa, instantânea. Nos gostamos mutuamente, desde a primeira vez em que nos encontramos num sábado de manhã, quando percebi que 'ela' me escolhera pra ser sua amiga - e não eu a dela. Me senti privilegiada, especial, a escolhida.

Era uma amiga cara, de saúde debilitada, com quem eu não hesitava repartir meu dinheiro a qualquer hora do dia ou da noite. Não havia final de semana nem feriado. Na hora que ela precisava eu estava lá. Sempre.

Quando jovem era namoradeira. E quando se apaixonava ficava louca, desvairada. Amores breves, passionais, com desconhecidos, muito diferentes de sua origem sofisticada. Momentos em que eu conversava com ela e tentava lembrá-la disso. Afinal, ela era uma 'lady'. Não adiantava. Ela não ouvia. Ouvia o que queria.

Com a idade foi ficando mais doente. Eu constatava isso em seu corpo e em seu comportamento. Não namorava mais, passava muito tempo deitada, dormindo, roncando, preguiçosa. E o fantasma aquele da separação me alertava que ela iria embora a qualquer momento...

Em suas últimas semanas fiquei dia e noite com ela. Gastei o que eu tinha e o que eu não tinha. Levei-a ao médico e fizemos tudo o que foi possível. Ela me olhava e eu sabia que ela me agradecia, mesmo não falando. Me agradecia por saber que eu estava lá e que eu dava a ela minha companhia, meu amor sem condições, meu tempo, meu melhor. Foram dias cansativos, de frio seco, céu azul e vento gelado. Dias lindos de inverno. Quase um ano atrás. Quase um ano que eu não conseguia falar sobre isso. Quase um ano que minha grande amiga se foi.

Lembro dela muito, com uma imensa saudade, que não me permite fazê-lo sem tristeza, com egoísmo.

Dorinha se foi. E com ela se foi um monte de mim. E me dou conta que esses elos que estabelecemos simplesmente tornam a vida mais fácil, mais feliz, menos 'eu'. Nos fazem mais próximos do real, da natureza, de nós mesmos, daquilo que de verdade somos e não do que possuímos ou imaginamos ser. O difícil não é estabelecer, é interromper.







Não deu tempo