O Dia do Voo



                                                                               Imagem Google


Enquanto varria a área ao redor da casa, viu no telhado, pendurado junto às vigas, algo estranho, assustador e que até mesmo poderia classificar de tenebroso. Parecia uma bola de folhas, teias, um emaranhado de tudo e de nada. Aos poucos, com receio e à  certa distância, observou uma asa preta. Bem, morcegos ali são comuns, mas não à luz do dia. Depois do pavor inicial, olhou cautelosamente, mas ainda com reserva, o que aquilo poderia ser. A imagem foi-se formando... Olhou de um lado, de outro, de frente e deduziu que aquilo não era parte de um morcego, mas sim uma pena longa, verde-escura e delicada. Fixou o olhar atentamente e percebeu que a asa pertencia a uma ave minúscula, que estava tão amedrontada quanto ela. Podia ver os olhinhos parados, o coraçãozinho pulsando com medo, e o biquinho laranja do beija-flor em seu ninho. Ali, abrigado do vento e suspenso por um graveto, indiferente ao risco das intempéries, ele se resguardava. Praticamente não saía, noite e dia, incansável, aguardando e aguardando.

Interessante como a visão de algo tão simples lhe suscitou memórias e sentimentos tão profundos. Lembrou do primeiro dia do filho, ainda bebê, na escola maternal. Deixou-o lá e não conseguiu olhar para trás. Precisava ir e não tinha escolha. Era ir ou ir. E quantos de nós não temos essa escolha e outras mais, tanto como filhos ou ‘enquanto’ pais. Recordou o dia em que ouviu do filho que ele deixaria a casa. Aquela casa com as vigas de madeira aparentes, com os jacarandás floridos e com a banheira de pássaros. Novamente não havia opção A,B,C ou todas as alternativas estão corretas. O beija-flor um dia deixaria o ninho e não poderia esperar seus filhotes crescerem e se formarem na faculdade. Era parte do ciclo natural  para alçar o grande voo de nossa vida, que passa e não avisa. E como uma vez disse a filha de alguém, ‘Um dia peguei minhas coisas e saí em uma hora que minha mãe não estava em casa. Se não tivesse feito isso, não teria conseguido sair dali e ficaria agarrada às memórias da minha infância, à voz da minha mãe, ao aroma do café e ao rádio ligado’.

Foi mais adiante. Perguntou-se como seria mais tarde. Se esses eventos tão simples e triviais, que ocorrem em todos os lugares do mundo, diariamente, possuem tais efeitos, imaginem o dia ‘D’, que não avisa e nos obriga  a deixar nossos filhos, os grandes amores, os potinhos da cozinha, o animal de estimação, o trabalho, o pôr do sol, o cheiro de alguém , a voz no telefone dizendo ‘alô’.

Não deve ser nada fácil.

‘C'est la vie’, diriam os franceses com sua indiferença peculiar. E é mesmo.

Refletiu sobre o  plano que ‘alguém’ tem para nós, em algum lugar, e do qual desconhecemos seus 5Ws. Mais uma vez, nos diferentes momentos de nascer, viver, amar, casar, ganhar, perder, mudar, formar, trabalhar, enriquecer, empobrecer, comprar, vender, magoar, ferir, separar, sorrir e chorar, sentiu-se tão vulnerável quanto aquele beija-flor. Porém, embora ele não saiba absolutamente nada do próximo minuto de sua existência, ele continua ali, chocando seus ovos, aguardando confiante e silenciosamente, pelo dia em que todos, indistintamente, terão que ir.



'A Fada que não era do Dente' ou 'Reflexões de Alguém que Nunca escreveu sobre sua Profissão'




 A menininha sentava à frente, sempre nos lugares próximos à professora. Era quietinha, de poucas palavras e  poucos amigos. Não entendia muito bem o que acontecia, mas lembra da professora mostrando uma fada de papelão, que na época parecia ser do tamanho de um adulto. A fada era loira, com cabelos compridos e olhos azuis, saia longa de tule, também azul, com uma varinha de condão na mão. Na ponta, uma estrela dourada. Ah, e ela também usava um chapéu  de cone estrelado  com um véu, sendo quase uma deusa.  Segundo  a professora, a fada tudo via, ouvia e sabia (embora não se movesse).

O que a menina fazia? Tudo o que era solicitado pela professora amiga da fada. A professora também tinha olhos azuis, mas usava na cabeça um tipo de turbante, característico dos anos 70. Tinha uma voz grave, postura séria, exigente. Mas, de vez em quando, ela se humanizava, sorria e segurava nas mãos das crianças para que escrevessem as letras no formato adequado.

Bem, na verdade então era só fazer o que a fada e a professora queriam. E assim o foi até o fim daquele  ano, até o dia em que a menina chegou à escola e percebeu a disposição diferente das classes (carteiras) na sala de aula, formando um quadrado. Parecia que alguns alunos ocupavam um lugar diferente, perto da bandeira do Brasil.  Era uma ocasião especial, pois trajava um vestidinho azul jardineira com uma blusa branca, tendo nos  cabelos escuros uma flor de tecido, que a mãe colocara especialmente para combinar com a roupa. Tirou fotografia perto da bandeira, bateram palmas, beberam refrigerante. Ela se perguntava o que estava acontecendo. Não sabia, não entendia. Até que lhe chamaram e lhe deram um papel enrolado com seu nome completo...

 Há muitos anos atrás, ao arrumar minhas gavetas e fotos antigas, encontrei o papel e a foto. Li as frases com aquela letra desenhada da minha professora e o título ‘Diploma’. Compreendi que aquele havia sido um dia muito importante na minha vida, embora na época eu não tivesse a menor ideia do que estivesse ocorrendo ao meu redor. Sei que o sistema educacional naquele tempo era completamente diferente, bem como a denominação ‘1 ° ano experimental’. Experimental por quê? Sei que as crianças todas tinham uma faixa etária incomum, a partir de 4 anos. Sei também que minha letra  hoje se assemelha muito à letra daquela professora, que hoje escrevo graças ao incentivo dela (e da fada). Sei que sempre fui uma leitora voraz (desde criança lia todos os ingredientes de todos os produtos) e que minha escolha profissional se deu por influência dela e de minha mãe (que trabalhava na mesma escola). E embora eu tenha estudado e tido oportunidades para trabalhar em outras áreas - após alguns anos iniciais de resistência- , rendi-me à profissão e à crença da Educação.

Hoje, quando vejo meus alunos utilizando o que estudamos, pronunciando bem as palavras de uma língua que não é a nossa e lendo um texto com maestria, sinto algo que todos os meus colegas sabem exatamente o que é; algo que não tem preço, marca, cor ou documento. Algo que por vezes é esquecido até mesmo por mim na correria do dia a dia, mas que me envolve e me torna feliz. 

E como diz Leo Buscaglia, professor, escritor e pensador americano: “ As teachers, we must believe in change, must know it is possible, or we wouldn’t  be teaching – because education is a constant process of change. Every single time you “teach” something to someone, it is ingested, something is done with it, and a new human being emerges”.



Sempre ele...

"...Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
Seguia sempre, sempre em frente…
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas."

Mário Quintana

Não deu tempo